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A câmera escura de Hercule Florence
Fotografia e a fixação da imagem na câmera escura.
Recém terminado de ministrar duas oficinas sobre os métodos e câmeras de Hercule Florence agora em maio de 2024, quero registrar um relato do processo desse trabalho. As pesquisas e feitos de Florence já me eram conhecidos de forma superficial desde minha graduação no início de 2000. Alguns anos mais tarde, adquiri o excelente livro do historiador e fotógrafo Boris Kossoy (pela Edusp), ainda na terceira edição. Recentemente, adquiri a mais recente quarta edição (Edusp 2020). Devo admitir que li o livro anos atrás mas tive dificuldade de entender exatamente os procedimentos de Florence pois seu processo está registrado de forma espalhada nas transcrições de seus diários. Então, deixei para uma oportunidade, um mergulho mais profundo em suas anotações.
Em maio de 2023, a unidade de São Paulo do Instituto Moreira Salles (IMS) promoveu, em pareceria com o Instituto Hercule Florence, um ciclo de palestras sobre o trabalho de Florence e as mais recentes pesquisas sobre a composição química dos poucos objetos fotográficos originais que ainda existem. Dentre os palestrantes do evento, estavam o Boris Kossoy e também o casal de historiadores e pesquisadores americanos Grant Romer e Ariadna Romer, estes de Rochester-NY.
A Simone Wicca e eu tivemos agradáveis conversas casuais sobre fotografia do século 19 com Grant e Ariadna durante os intervalos das palestras. Eles são realmente uma fonte profunda de conhecimento, tendo tido o Grant Romer uma carreira e participação ativa e muito importante no George Eastman Museum (Rochester–NY). Finalizado o programa do evento, fomos gentilmente convidados pelo Sérgio Burgi e Millard Schisler, ambos do IMS, para participarmos de uma atividade extra no dia seguinte, onde o Grant e a Ariadna Romer falaram sobre seu projeto Academy of Archaic Imaging e apresentaram mais detalhes de suas pesquisas sobre os procedimentos de Hercule Florence.
Neste dia extra, os dois apresentaram uma série de objetos óticos, como câmera escura e câmera clara, Câmera de espelho e especialmente algumas versões que construíram das duas câmeras que Florence descreve em seus diários. Grant mostrou seu álbum de resultados da pesquisa dos procedimentos fotográficos de Florence. Ariadna mostrou seus testes para produzir a matriz com fuligem, sugerida por Florence. A conversa teve um direcionamento para multiplicadores, destacando como o trabalho de Florence pode ser usado em atividades pedagógicas utilizando materiais simples para construções. Eu, como “oficineiro de fotografia” achei bem instigador. Vi realmente um caminho para uma oficina, mas ficou “nas ideias”.
Poucos meses depois, a Ana Angélica Costa me convidou para ministrar uma oficina fotográfica relacionada ao Hercule Florence como parte da programação do Festival Hercule Florence, que acontece anualmente em Campinas. A atividade aconteceu no Sesc Campinas, em parceria com o festival. Foi a oportunidade para me aprofundar nos equipamentos fotográficos de captura de Florence, duas câmeras vagamente descritas e apenas uma delas com um único esboço de uma vista lateral.
Naquela atividade, eu iniciei com informações básicas sobre a ótica de uma lente simples para poderem entender a geometria necessária para a construção de câmeras escuras. Também mostrei uma câmera obscura “de ver” para entenderem o que Florence tinha a disposição como tecnologia corrente. Os participantes então começaram a construir a primeira câmera que Florence descreve nos primeiros dias de sua pesquisa fotográfica, em janeiro de 1833. Com a referência da câmera escura “de ver” e as poucas informações do diário de Florence, cada um estava livre para criar sua versão da câmera “paleta”, que tem como peça uma paleta de pintura para segurar a lente.
A segunda câmera construída parte também de uma breve descrição escrita nos diários de Florence, mas esta tem uma visualização pelo esboço que o autor fez. Assim, a segunda câmera foi construída na oficia com o mesmo material que a primeira (foamboard preto) mas com peças já pré cortadas por mim.
Montadas as câmeras, fizemos capturas com elas utilizando um método similar ao do Florence, a receita de desenho fotogênico de Fox Talbot, estabilizado com sal.
A seguir imagens feitas durante a atividade no SESC Campinas em 2023.
Neste começo de 2024, a Ana Angélica voltou a entrar em contato para pedir novas “coisas” para integrar à inauguração de uma sala expositiva permanente sobre o Hercule Florence no MIS de Campinas, em 18 de maio, produzida pela equipe do Festival Hercule Florence.
A primeira foi construir duas versões mais robustas das câmeras do Florence. Quer dizer, da minha interpretação do que teriam sido as câmeras dele. Fiz ambas em madeira maciça cedidas pela Oficina Urutau. Ambas também usam lentes de óculos (para hipermetropia) de +5 dioptrias, ou seja 200 mm de distância focal.
Para a “câmera paleta”, desenhei uma paleta num programa vetorial e cortei uma placa de jatobá em uma CNC laser. O corpo é cedro aparelhado pela Urutau e cortado por mim em serra de mesa. Tentei seguir a descrição de Florence mas adicionei algumas coisas pelo contexto de uso que elas terão: ficar em exposição ao público e eventualmente serem manipuladas por um educador do museu. Uma das coisas foi fazê-la desmontável para que se possa ver seu interior e suas partes. A outra foi incluir um vidro despolido para se visualizar a composição. Ao que tudo indica, a de Florence não tinha como pré visualizar a imagem.
A segunda câmera também foi feita em pranchas de cedro cortado na serra de mesa. Pelas anotações de Florence, o tubo da lente era duplo, para focar, e provavelmente feito de papel rígido preto. Eu acabei fazendo em metal para aguentar mais à manipulação. Escolhi um tubo de latão para ficar similar aos materiais do século 19. Também em latão, fiz a portinha que cobre o furo para pré visualização da imagem no interior da câmera. Ambas as câmeras tiveram o interior pintado com tinta preta à base d’água e o exterior coberto com algumas demãos de óleo de tungue.
As câmeras podem ser vistas na sala expositiva junto com um vídeo que demonstra alguns umas fases da construção dos dois aparelhos, com uma narração lendo trechos relacionados dos diários de Florence.
As outras duas coisas pedidas são as duas oficinas que ministrei também no MIS Campinas. A primeira, no dia 17/5, foi inédita para mim: os processos de Florence. Desta vez me aprofundei mais nos procedimentos sugeridos pelo Florence em seu diário — matriz de vidro, cópias em “nitrato de prata”, cloreto de prata e “cloreto de ouro”. No início da atividade eu repassei os diversos trechos transcritos dos diários (presentes no livro de Kossoy) comentando e contextualizando cada um deles. Depois, cada participante aprendeu a fazer a matriz de vidro com “fuligem gomada”, a transferir um desenho para a matriz, “riscar” a matriz, preparar o papel fotossensível, expor à luz e processar a imagem, ou o “desenho” como referido por Florence.
Fizemos também testes de sensibilidade e processamento com algumas variáveis como a adição de cloreto de sódio e hidroxido de potássio à prata.
A segunda oficina, dias 24 e 25/5, foi novamente a de construção das câmeras fotográfica. Foi similar a do ano anterior, porém a segunda câmera eu fiz um projeto para ser montado a partir de peças cortadas em CNC laser, como um kit. Achei que o uso de uma técnica bem contemporânea de produção, o laser, poderia trazer outras reflexões sobre o aparelho e também torná-lo um pouco mais resistente ao uso posterior pelos participantes. Cada um deles levou as duas câmeras que montou na atividade.
Desta vez, fizemos uma captura química, com prata, apenas com a “câmera paleta”. A segunda demorou um pouco mais para o grupo montar do que eu previ e acabou não dando tempo de fazer a exposição de 2 a 4 horas como registrado por Florence. Mas deu pra fazer em papel fosforescente, que leva uns 5-10 minutos. Eu quis usar pois o Grant Romer havia sugerido o uso da versão atual do material, usado para sinalização, mas Florence anota em seu diário que deveria ser possível gerar imagens positivas diretas em papel coberto por fósforo, mas não chegou a testar.
A seguir alguns registros das duas oficinas feitos pelo fotógrafo e também da equipe do Festival Hercule Florence, Ricardo Lima.
Eu quero reforçar o agradecimento ao trabalho das pessoas citadas ao longo deste texto. A pesquisa registrada por Florence é de grande importância para a história da fotografia, mas também um ótimo processo pedagógico para se discutir a fotografia. Espero ter novas oportunidades de oferecer novamente estas oficinas.
Roger Sassaki
28/5/2024
Comentários
Uma resposta para “A câmera escura de Hercule Florence”
Muito legal! Parabéns!
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